CENAS DO PRÓXIMO CAPÍTULO: sonho e parcerias!
Jorge Mello
NOS TEMPOS DA UNIVERSIDADE
Na segunda metade dos anos 1960 vinha eu
do Piauí para Fortaleza movido por dois grandes sonhos: a universidade e a
carreira musical (essa alimentada pelas notícias da chegada da televisão na
capital alencarina). É que na minha terra natal, Piripiri, eu já encantava as
garotas com minhas composições interpretadas nas serenatas pelas madrugadas, e
achava pouco. Queria muito mais! E também me divertia nos programas de rádio de
Teresina, onde estudava. Cheguei em Fortaleza no início de 1967. Nesse ano prestei
vestibular para cursar Direito na UFC e meu irmão Emanuel Carvalho, prestou
para Medicina. E logo no início de 1968 o Emanuel chega pra mim com a notícia
de que na sua turma tem um cara igual a mim, segundo ele, que “fica todo tempo
criando versos e tocando violão”. E ele levou até onde eu morava numa republica
estudantil o tal colega de turma. Assim conheci o Belchior em março de 1968.
Claro foi como cair a sopa no mel. Fiquei imediatamente ligado a ele e ele a
mim. Frequentei sua casa e ele visitava muitas vezes o meu canto, um apt. de
apenas um cômodo na Av. Duque de Caxias.
Nossas discussões no universo artístico
eram influenciadas pelos temas políticos próprios dos movimentos estudantis
daqueles tempos difíceis. Eu gostava de conversar sobre aquele dualismo que
preocupava Mário de Andrade: por um lado a arte brasileira, pelo outro a arte
internacional. Discussões éticas sobre o “primitivismo” ou o “exorcismo
divertido”, e ainda o “esquisito apimentado”. Ou ainda a recusa a esse
universalismo. Vivia a pensar se iríamos trabalhar com códigos populares ou com
códigos eruditos? Perguntava sempre isso aos colegas da aventura musical. Era
uma chatice ficar ouvindo coisas como: ”isso não é ritmo brasileiro”; “agora,
sim... isso, sim é de nossa terra e nossa gente...!” Eu, na qualidade de
compositor brasileiro não me vi obrigado a utilizar essas fórmulas estabelecidas.
Essa discussão me incomodava...! E foi conversando com alguns compositores contemporâneos
que fui sentindo mais conforto com a liberdade de criar sem tanta obediência a
ritmos e fórmulas. É claro que ouvíamos Luiz Gonzaga, mas também se ouvia Tom
Jobim, João Gilberto e Egberto Gismonti. Assim creio que nossa música, e, a de
minha geração foi se soltando e sentindo liberdade para criar...!
No ano seguinte 1969, depois de
participação em vários festivais de música local, e tendo nos saído bem nesses
eventos, fomos eu e Belchior, convidados para dirigir a parte musical de um
programa na TV Ceará: PORQUE HOJE É SABADO, sob a regência de Gonzaga
Vasconcelos. E ali foi um dos embriões do que se tornou conhecido por
“Pessoal do Ceará”. Nos festivais eu e ele conhecemos a rapaziada que fazia
música em Fortaleza, mas não tínhamos intimidade com essa turma. Nossos
encontros com essa turma no começo eram encontros formais. Com o programa na TV
houve um amadurecimento dessas amizades e logo nos sentimos enturmados. Os encontros se estendiam ao
ambiente universitário, principalmente na Faculdade de Arquitetura e aos bares,
como o Balão Vermelho na Av. Duque de Caxias e
também num bar ao lado da TV
Ceará que tratávamos por “Gerbô”. E logo nos reuníamos no Bar do Anísio na Av.
Beira Mar, vizinho à casa do Cláudio Pereira.
Lá no Bar do Anísio encontramos todos
aqueles amigos que conhecemos nos festivais, na TV e nos outros bares da
cidade. Éramos uma família agora. Irmãos inesquecíveis: Petrúcio Maia, Cláudio
Pereira, Augusto Pontes, Rodger Rogério, Tetty, Fausto Nilo, Mércia Pinto,
Chica (Francisca Nepomuceno), Ieda Estergilda, Antonio José Brandão, Dedé,
Ednardo, Cirino, Fagner, Ricardo Bezerra, Olga, Delberg, Sérgio Pinheiro, Amelinha,
Belchior e eu, Jorge Mello. Uma delícia estar com esses amigos...!
No ano seguinte passamos eu e
Belchior, a dirigir a parte musical de
outro programa na TV Ceará: GENTE QUE A GENTE GOSTA (também sob o comando de
Gonzaga Vasconcelos). E ainda na universidade eu e Belchior em parceria criamos uma trilha
musical para o texto de teatro de Eduardo Campos “O MORRO DO OURO”, peça que
foi montada sob a Direção de Haroldo Serra e com a Direção Musical minha. O
espetáculo foi inscrito no Festival de teatro de São José do Rio Preto. E esse fato foi muito importante para meu
desligamento do Nordeste e ajudou na minha decisão na busca da carreira profissional
de cantor/compositor no eixo Rio e São Paulo. Era o que eu esperava para ir embora
definitivamente e tentar a carreira no chamado “Sul Maravilha”. Ainda sobre
esse espetáculo, devo observar que foi montado também no Rio de Janeiro em 1972
e em São Paulo em 1976, sempre com grande sucesso de crítica e de público,
tendo nas três montagens, minha mulher Teca Melo no principal papel feminino e
eu no principal papel masculino, acumulando também a Direção Musical.
Muitas publicações em livros contaram essa
história. Destaco os escritos do amigo Wagner Castro (Doutor em História), colega
músico e compositor que soube conduzir com maestria o relato dessa aventura em
suas obras. No dizer de Gilmar de Carvalho (jornalista, professor da UFC e
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP): “Na terceira fase vieram a
televisão e os festivais. Os programas “Porque Hoje é Sábado” e “Gente que a
Gente Gosta”, na TV Ceará, ambos produzidos e apresentados por Gonzaga
Vasconcelos, passaram a recrutar o pessoal novo. Então pintou a possibilidade
de mostrar um trabalho para um público maior, de se encarregar da direção
musical: era a fase da aprendizagem. Os festivais, por sua vez, ao invés de
separar, pelo caráter de competição, juntavam mais a turma. Era a certeza de
que havia um trabalho, um processo e de que todo mundo estava perseguindo a
mesma meta, apesar de serem diversos os caminhos. E houve o Festival Aqui,
promovido pela Rádio Assunção e pelos diretórios acadêmicos das escolas de
Arquitetura e Serviço Social e Orgacine, em cujos estúdios, em Fortaleza, foi
gravado o LP artesanal, depois prensado pela Companhia Industrial de Discos.
Depois vieram os festivais promovidos pelo DCE, TV Tupi, o Nordestino, também
pela TV Tupi, e o de música de carnaval, pela cervejaria Astra. Nomes como o de
Rodger Rogério, Ricardo Bezerra, Petrúcio Maia, Belchior, Ednardo, Fagner,
Lauro Benevides, Jorge Mello, Cirino, Luis Fiuza, Ribamar, Dedé, Braguinha,
Sergio Pinheiro, e Maninho despontavam.
Então o pessoal começou a se mandar. O
êxodo seria a quarta fase. Era a consciência da qualidade do trabalho e a constatação
de que fora do Rio-SP, centros de geração e difusão de ideias e atitudes, era
inútil insistir. Faltaria ressonância ao
trabalho e nenhuma proposta e arte sobrevivem dissociadas do púbico que ela
visa atingir. Foi-se a primeira leva. Belchior trancou a matrícula do curso de
Medicina e se mandou, cantou na “barra pesada” e venceu com “Na hora do Almoço”
um festival universitário de âmbito nacional. Era o começo. Jorge Mello foi dos primeiros a emigrar. Ednardo
e Fagner foram depois.”
A PROFISSIONALIZAÇÃO NA MÚSICA
Há um dado de suma importância que não
apareceu ainda nos estudos da trajetória de todos nós. Tanto por aqueles que
entendem ter havido um movimento (“Pessoal do Ceará”), ou por aqueles que
entendem que não houve movimento nenhum e que tudo foi apenas um grupo de
vários músicos atuando em carreiras individuais. Devo explicar que logo que
chegamos ao Rio de Janeiro, conhecemos o casal Reinaldo Zandrand e Cássia
Zangrand, que nos recebeu em sua casa como se fôssemos filhos. Nos trataram
como filhos, fornecendo alimentos e vestuário. Também foram os fiadores do
apartamento em que morei com Teca Melo, em Copacabana, tendo a companhia em
casa de Belchior, Fagner e Cirino, que moravam comigo. Esses amigos que
conhecemos no Rio de Janeiro nos apresentaram a todas as pessoas importantes do
meio artístico, os convidando para virem a sua casa só para nos ouvir cantar e
nos conhecerem. E isso acontecia todos os dias, de segunda a segunda. Creio e tenho certeza de que sem essa força de
Reinaldo e Cássia, as coisas teriam sido bem mais difíceis para todos nós,
artistas do nordeste buscando nossos espaços. Outro casal que foi muito importante na
divulgação de nossas presenças no eixo Rio - São Paulo, foi o Manuel Carlos e
Cidinha Campos, ele hoje autor de novelas da Rede Globo, ela é hoje Deputada
Estadual pelo Rio de Janeiro. Foram pessoas que também muitas vezes programaram
em sua casa encontros objetivando nos apresentar àqueles que consideravam importantes para nossas
carreiras. Cidinha Campos foi quem nos deu o maior incentivo quando ainda
estávamos em Fortaleza. Em São Paulo, tivemos outra madrinha inesquecível,
Antonieta Felmanas, que fez o mesmo que os anteriores. Colocou-nos no centro dos acontecimentos
culturais da capital paulista. Mantenho amizade com essas pessoas até hoje. E
no caso dos falecidos, a amizade continua com seus filhos e netos. São importantes na minha vida. Inesquecíveis.
Sem eles, as coisas teriam acontecido com maiores dificuldades para todos nós. Não
esqueço amigos que se mostraram interessadas em nosso trabalho, programando em suas casas verdadeiros saraus
que iam até o amanhecer do dia, onde pudéssemos apresentar nossa música e nossa
obra aos convidados. Nos deram visibilidade. Nossa vida teria sido muito mais difícil e
possivelmente teríamos tido maiores
dificuldades para criar laços de amizade com os grandes artistas, produtores,
executivos de gravadoras e ainda homens da publicidade. Tenho um diário que
conta essa aventura, onde registrei data e hora em que cada uma das pessoas que
nos ajudaram, produziram, ou patrocinaram estiveram conosco pela primeira vez. Não
posso deixar de falar da importância desses amigos que nos recebiam em suas
casas com a única finalidade de nos apresentar a importantes figuras da TV, do
rádio e do “show business”, tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo. Fica
aqui o meu agradecimento. Estendo esse agradecimento também a Simon Bau e Irede
Cardoso que além de nos oferecer uma casa para morar em São Paulo, nos recebiam
em seu lar para ensaios e encontros artísticos.
Devo também ressaltar que naqueles dias em
que moramos no Rio de Janeiro, eu, Teca, Belchior, Fagner e Cirino, pouco me
interessei por vender a ideia de um grupo musical ou de um movimento cultural organizado.
Éramos, identificados, sim por “um pessoal do Ceará”, nunca, como ficou
conhecido após a chegada do Ednardo, Rodger e Tetty que criaram o “Pessoal do
Ceará” conhecido como um conjunto musical que alcançou grande sucesso, depois
abrindo para a ideia de um movimento cultural. Vejo as coisas como vê o Fausto
Nilo quando diz: “De certa forma os principais artistas e criadores envolvido
nos projetos “Soro” e “Massafeira”, são originários do mesmo chamado “Pessoal
do Ceará”, designação por mim constantemente rejeitada pelo seu significado
regionalista e por sua estreiteza como âmbito cultural artificial que nos
confina a um recanto de artistas não incluído nas escalas nacionais” (NILO,
Massafeira – 30 anos. Fortaleza Edições Musicais. 2010. p.138).
No trabalho diário com a
atividade musical, me tornei o maior parceiro de Belchior. Trabalhamos juntos
em composições que foram nascendo naturalmente pela presença, aproximação e convivência no ambiente de
trabalho e no ambiente familiar. Primeiro ainda no Rio de Janeiro à partir de
1971 o poeta morou em minha casa por três anos. Depois em São Paulo, nos
tornamos sócios da PARAISO DISCOS e da
EDITORA MUSICAL CONSTELAÇÕES, o que nos fez trabalhar sob o mesmo teto mais de
uma[JM1]
década. Posso afirmar que nessa convivência, fui o leitor privilegiado, aquele
que primeiro pôs os olhos no que o poeta escreveu nesse período. Ele também foi o primeiro leitor de tudo que escrevi naquele período. E nesse ambiente de
trabalho, de criação, de estudos, de leitura, tínhamos altos papos,
conversações infindáveis dentro das noites, sobre música, filosofia, artes
plásticas, teologia e literatura. Fazíamos infinitas leituras comentadas das
mais variadas obras da literatura universal. Foram momentos inesquecíveis e de
grande aproveitamento para minha formação e para a qualidade de minha música,
poesia e demais escritos. Principalmente de meus poemas. No meu livro
BENEDICTUS – UMA AVENTURA DE MAGIA, escrevo na contracapa: “Agradeço ao
parceiro de tantas canções que compomos juntos, Belchior, que foi o primeiro a
por os olhos nesses escritos, ...” As
outras obras minhas como ensaios, monografias, ficção, têm pitacos, comentários
e revisões da língua e da estética feitas pelo parceiro/amigo, poeta Bel.
Abro
um período para falar de meus parceiros: Criei canções com uma infinidade de
compositores. Entre eles: Belchior, Vicente Barreto, Anastácia, Evaldo Gouveia,
Cesar do Acordeon, Carlos Pitta, Jairo Mozart, Clôdo Ferreira, Reginaldo Rossi,
Gereba, Capenga, Pekin, Lumumba, Antonio J. Brandão, Paulo Soledade, Graco,
Yeda Estergilda, Ricardo Bezerra, Malcom Roberts, Emanuel Carvalho, Manoel
Carlos, Cirino, Costa Senna, Nando Correia e algumas tentativas com Tom Zé
(nunca terminadas), e muitos outros compositores...! Também musiquei poemas
clássicos da literatura brasileira, porque sou parceiro de Olavo Bilac na
canção “OUVIR ESTRELAS” (Jorge Mello e Olavo Bilac), que foi gravada no álbum
“Mais que de Repente” e a canção “GAROA DO MEU SÃO PAULO” (Jorge Mello e Mário
de Andrade), gravada no álbum “Dengo Dengue”. O Belchior, pela aproximação, foi
o parceiro mais constante e também o que gerou comigo o maior número de canções
gravadas.
Quando o sucesso chegou ao meu amigo e
parceiro, com o reconhecimento do trabalho autoral conversamos profundamente
sobre a situação dos Direitos Autorais no Brasil. Esse assunto me interessava.
Belchior sabia disso. Analisávamos o que
acontecia naquele momento em que os grandes nomes da MPB contestavam a forma de
administrar e arrecadar tais direitos. Éramos ligados a entidades, a
associações de classe, mas, combatemos aquelas entidades e a forma de como
praticavam suas atividades. Fomos presentes nessa luta por melhores leis
autorais e melhores formas de sua arrecadação. Essa batalha motivou a
necessidade de o compositor ter maior controle de sua produção. Como enfrentar os
usuários das obras musicais: gravadoras, editoras musicais, intérpretes,
produtores de eventos, empresas de radiodifusão, TVs e outros usuários. Havia
uma insatisfação quanto aos contratos de edição com cessão de direitos. Esse
tipo de contrato era defendido pelo sistema com argumentos econômicos e não
políticos. Era uma discussão antiga, vinha desde os tempos da Bossa-Nova. Nesse
ambiente de acirrada discussão, momento em que a SICAM (Associação de
Compositores e Autores Musicais), publicou
um edital no Jornal da Tarde de 6/2/1975, em que nos chama de
“subversivos” e até expulsou de seu quadro alguns compositores, nós os novos
autores nos sentíamos sem pai, nem mãe, nem terreno para pouso. Eram momentos
difíceis...! Os que entravam com alguma
proposta para discussão eram tratados como “arrogantes”. Foi nesse ambiente quente de ideias e de
mudanças, que um dia Belchior me chama a sua casa e lá ele sabe por mim que eu
abri uma produtora de eventos, de gravação e produção de trilhas sonoras (uma
gravadora). Ele queria saber mais sobre essa coisa de administrar seu próprio
negócio. Me fazia perguntas diretas e cheias de curiosidade. “Jorjão tu sabe
cuidar disso, dessas coisas aí, empresa, contador... impostos, essas coisas?”
Eu afirmava que sim. Que me vi forçado a ter minha empresa, por não ter
empresário. Por necessitar trabalhar, fazer shows, eventos em entidades que
exigem nota fiscal de serviços, atender a clientes que me pedem trilhas de
publicidade etc. Foi por isso que abri a TERRAMAREAR ATIVIDADES ARTÍSTICAS
naquela ocasião. Empresa em que uma das atividades era a venda de shows e a
outra era a de gravação sonora de “jingles” (trilhas de publicidade) e gravação
de discos.
Havia uma nova tendência dentro da música brasileira, no dizer da matéria
publicada no Jornal Opinião no dia 07 de 1975, intitulada: PROFISSÃO: ARTISTA;
CATEGORIA: AUTÔNOMO, da jornalista e crítica de música Ana Maria Bahiana. (Esse
texto foi publicado no seu livro: “Nada Será Como Antes – MPB nos anos 70”). Ali
naquela matéria no jornal a autora dizia que os artistas partiram para a
autogestão de suas carreiras. Eu fui do time de frente dessa iniciativa que
naqueles tempos serviu de exemplo e incentivo para muitos outros. Vejamos como
me posicionei naquela matéria do Opinião. Diz ela: “-- O que é que eu tinha?”,
pergunta o compositor, maestro e professor Jorge Mello. ‘Eu tinha meu disco. Só
meu disco. Saí com o disco debaixo do braço por aí, saí tocando. Fui de Além
Paraíba (Minas Gerais) até Altamira no Pará. No meio do caminho meu grupo
desistiu, a barra era muito pesada. Aí chamei minha mulher e nós dois seguimos
nos apresentando, eu na guitarra e ela com um pandeiro. E, tocamos em porta de
cinema, porta de armazém, praça pública, igreja.”,
Mais adiante no texto da mesma matéria
continua a jornalista: “Evidentemente um esforço coletivo significaria menos
trabalho para todos. Mas ainda não é fácil reunir essa geração angustiada,
aflita para passar em qualquer brecha. Em São Paulo houve uma bem sucedida
tentativa de mutirão musical. A Feira de Música Popular, organizada por Marcus
Vinícius e Jorge Mello no Teatro Aplicado. Teve pontos positivos. ‘As pessoas
se inteiraram umas dos trabalhos das outras, houve uma mostra das tendências
mais diversas. E um espírito de equipe incrível: a gente não conseguia arrumar
som, pedimos ao público, no primeiro dia que nos ajudasse. Durante a semana
começou a pintar microfones, caixa, mesa, e, na segunda-feira seguinte, a gente
já tinha uma aparelhagem’ – diz Jorge Mello. Mas foi temporária, dispersada com
a ocupação do teatro por uma temporada teatral. Continua predominando o esforço
individual de uma turma numerosa que inclui os cearenses Rodger, Teti, Fagner,
Belchior, Ednardo e Amelinha, o pernambucano Marcus Vinícius, o piauiense Jorge
Mello, o carioca Jorge Telles, os paulistas Walter Franco, Waldemir Marques e
Thiago Araripe, e até alguns grupos de rock, como o Apokalipsis, o Joelho de
Porco e o Made in Brasil.”
Senti naquele momento que precisava
urgentemente me organizar. Tinha que ampliar as chances de trabalhar com
música. Abandonei o magistério, montei uma banda com os próprios alunos de
música escolhido a dedo entre as três faculdades onde ensinava e caí na estrada
com os shows. Ao mesmo tempo também invadi as produtoras e os estúdios na busca
de trabalhar com publicidade. Ampliei os contatos indo às gravadoras não só
oferecendo minhas composições e minha voz, como artista do “cast”, mas, também
oferecendo meus conhecimentos de
arranjador para atuar nas produções de álbuns dos artistas já contratados. Deu
certo. Virei um rato de estúdio. Passava dias e dias ora gravando ou produzindo
trilhas, ora como músico acompanhante. Ora como produtor ou criador de trilhas
de publicidade. Ora como produtor dos álbuns de grandes nomes da música
popular. Ganhei muita experiência.
Essa experiência com certeza atraiu a
atenção de Belchior. Que sendo o artista de sucesso popular que se tornou, não
poderia cuidar de uma gravadora, uma produtora e uma editora musical sozinho,
precisava de alguém com essa experiência. Então me convidou para ser seu sócio e
eu me associei a ele na criação de nossa gravadora PARAISO DISCOS, tendo o
Hélio Rodrigues Ferraz também como sócio no início, depois de pouco tempo
fiquei com suas quotas e a empresa se tornou minha e do parceiro Belchior. Devo
informar que não fechei a minha própria empresa e que continuei a prestar os
serviços de produção e criação de trilhas de publicidade, de cinema e de teatro
na JMT PRODUÇÕES (nome novo dado à mesma TERRAMAREAR já citada, troquei só o
nome). E assumi a Direção de Produção de tudo que a PARAÍSO lançou ao mercado. Uma
empresa não atrapalhava os objetivos da outra.
Na área de shows, tive que aprender
muito também. Como falei eram tempos de mudanças. “Os empresários, subprodutos da indústria
fonográfica, se viram em idêntica situação. Como explica, agudamente, o
compositor Marcus Vinícius: ‘A crise da indústria estrangulou o mercado,
encareceu o custo da montagem de um espetáculo. Aí os artistas foram passando
às escolas, às faculdades. E para fazer show em faculdade, não precisa
empresário. Empresário, como em geral a gente imagina, aquele cara que descobre
o artista, constrói o artista e batalha por ele, não existe no Brasil, há muito
tempo. Isso é miragem de uma outra realidade, de Hollywood. Empresário é um
cara que trabalha no telefone, marcando datas. Isso, se você quiser, você pode
fazer também.’”
Foi o que fiz ao abrir a minha própria
produtora e gravadora. Senti que poderia fazer alguma coisa na área de produção
de eventos e de trilhas e ainda de discos, porque não via como entregar isso a
outra pessoa, porque não atraí o interesse de nenhum sujeito que quisesse fazer
isso por mim. Caí de boca no mercado e fui fazer meus shows. Produzir trilhas
de publicidade e trilhas para teatro e cinema. E produzi e lancei meus próprios
álbuns pelo meu próprio selo.
O Belchior ao perceber na prática meu
trabalho, imediatamente perguntou se eu saberia cuidar também de uma empresa
que fosse uma editora musical. Respondi
que saberia, sim. E poucos dias depois ele me chamou para um novo encontro e
resolvemos ter nossa editora musical. Assim nos tornamos sócios em duas
empresas. Nasceram as empresas PARAÍSO DISCOS (gravadora) e a CONSTELAÇÕES
(editora musical). Na primeira produzi nos melhores estúdios de São Paulo dezenas
de álbuns. Gravei os mais variados artistas, dentre eles o Belchior e meus
próprios álbuns. Uma façanha que o ambiente artístico musical da época não
entendia. Era um pioneirismo no Brasil, ver os próprios artistas terem uma
gravadora. E por causa dessa sociedade, dessa ligação empresarial, eu e
Belchior passamos muito tempo juntos e em razão disso as parcerias foram
aparecendo naturalmente. Nunca programamos nem agendamos fazer músicas. Como se
poderia pensar. Tipo, assim, esquecer as funções por um tempo e trabalhar na
criação de composições em parceria. Não! Não acontecia assim. Nossas parcerias iam
surgindo por puro acaso.
Eu vivia com o violão ao lado da mesa de
trabalho no escritório, porque era o produtor e arranjador, e, o instrumento me
facilitava nesse serviço de trabalhar a sonoridade e os arranjos das obras que
iria gravar no estúdio. Gravava quase todos os dias! E quando no escritório, pegava o violão,
muitas vezes para criar um arranjo para uma produção de um artista qualquer, ao
pontear alguns acordes o Belchior gritava de sua sala ao lado: “Jorjão, toca
isso aí de novo...” Eu repetia a frase
no violão uma duas três vezes e ele aparecia curioso e dizia. “Faz mais uma
vez...!” Passados alguns instantes ele aparecia com uns versos e pedia que eu
visse. Eu via, cantarolava para ele ali do lado e assim as canções foram
nascendo.
Ele
costumava comer o alimento que cozinhava na cozinha do escritório. Muitas vezes
ao fazer o alimento ou enquanto comia ele gritava de lá. “Repete esse lance aí
Jorjão!” Eu repetia e no final da tarde
ele me entregava um texto pronto. E assim criamos mais de duas dezenas de
canções que foram gravadas por ele e por mim e por vários outros cantores e
ainda, temos canções inéditas...! Posso
afirmar que sou o seu maior parceiro em número de obras, ou o parceiro mais constante
do poeta Belchior.
AS PARCERIAS:
Vamos falar de algumas das canções que
fizemos juntos e depois tratarei de outras obras criadas só por ele e que
merecem considerações. Para tanto devo informar que não me preocuparei com a
cronologia de suas criações, nem de seus
registros em suportes como LP em vinil ou em Cds e outros, onde se encontram
essas obras fixadas.
Certo dia eu trabalhava na criação de uma
canção falando de meu filho Rúrion quando tinha cinco anos (isso em 1983), e de
repente o Bel entrou no escritório, foi para sua sala e lá permaneceu
desenhando por algum tempo. Eu matutava uns acordes daqui, outros dali... quando
ele gritou de lá, como sempre fazia
quando se tocava ou se sensibilizava com minhas criações ao violão:
“Jorjão repete isso mais rápido, como se estivesse mostrando a Bil Harley, ou
pro Chuck Berry...!” Eu imediatamente atendi. Como não tinha texto escrito
ainda, tentava por uma letra improvisada
na melodia, para facilitar o canto que criara de forma a ser perceptível ao
parceiro. Meu texto na realidade estava só começando... era formado de pequenos
rabiscos, nada ainda amadurecido. Afinal era pra meu filho... não passava de pedaços
de texto. Tinha poucas palavras e por não ser suficiente para solfejar conforme
pedira o parceiro, fiquei como faz um repentista, improvisando, na forma de
“meio quadrão”, com versos em redondilha maior (versos de sete sílabas). E no meio dessas estrofes eu ficava enrolando
a melodia dizendo apenas: “Rock, rock, rock, rock”. E, assim segui cantarolando
a melodia, voltando a repetir os
improvisos naquela bela forma, mas, cantava numa melodia que mais lembrava um
rock ou blues, não os modos do repente. Passados alguns minutos o Bel saiu de
sua toca e me surpreende com uma estrofe pronta, com um belo texto que ele
criou, utilizando algumas palavras da obra original que eu escrevera pra meu
filho. Adorei! Repeti aquilo por horas.
E não falamos mais nisso. Ele voltou a seus afazeres e eu cuidei de outras
providências. No dia seguinte ao chegar no escritório pela manhã, ele me
recebeu com o texto pronto. E juntos ficamos horas cantando e conversando sobre
o texto e a melodia. O título: “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR ELETRÔNICO”.
Essa canção foi gravada pelo bardo
cearense no álbum que a PARAÍSO DISCOS produziu com ele, cujo título é: “CENAS
DO PRÓXIMO CAPÍTULO”. Foi o primeiro disco de nossa empresa que verdadeiramente
vendeu. Um sucesso muito grande e nos deu fôlego para outros empreendimentos.
Era esse o terceiro álbum de nossa gravadora. Nesse álbum ele interpretou
quatro obras minhas escritas em parceria com ele. Além da obra citada gravou
também: “ROCK ROMANCE DE UM BOBÔ
GOLIARDO”, “PLOFT” e “O NEGÓCIO É O SEGUINTE”.
Adorei “CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR
ELETERÔNICO”. Belchior que até então se caracterizava por ser um compositor de
melodias monocórdicas, em alguns casos, apresentadas como meros pretextos para
a sustentabilidade do texto, agora tinha um rock pesado, tradicional como
tantos outros dos anos 1950 e do início
dos anos 1960. Lembrando mesmo as criações e interpretações do Chuck Berry e do
Elvis. Ele que sempre se mostrava um inventor de belos textos, criou para minha
obra uma dessas joias. Como bem disse o jornalista Jotabê Medeiros:
“Musicalmente, Belchior assumia que a influência da cultura ibérica, moura e
provençal definia seu estilo, mas não o encapsulava em nenhuma formula. Assumia
inflexões dos cantos gregorianos que aprendera no colégio de frades e das
tendências poéticas épicas e picarescas da tradição”.
O parceiro entendia essa característica de
sua obra. Sabia que tem letras mais significativas que suas melodias. Ele sabe
que suas criações sem parceria, privilegiam mais o texto do que o resultado
musical de sua criação. Ele reconhece isso quando diz: “É claro que as minhas
melodias são melodias fáceis, redundantes e a minha letra é mais importante do
que a música, assim como as letras do Chico são mais importantes do que a
música e a melodia do Pixinguinha é mais importante do que a letra” (Belchior
em entrevista ao Pasquim em 1982,p.10)
O que é importante que se diga é que essas
melodias criadas pelo parceiro eram absolutamente eficientes para a sua função.
E com isso a média da qualidade de criação
alcançava níveis elevados. Ótimas canções realizadas sem a ajuda de parceiros. Ótima obra, fácil de ser reproduzida nos
bares por outros músicos e guardada na memória. E nas letras vemos fenômenos
fantásticos, inclusive a inclusão de um vocabulário novo que foi incorporado ao
ambiente da música popular.
Essa posição de ser um cantor popular, de
sentir que suas melodias simples podem chegar mais facilmente às massas, ao
sucesso radiofônico, ao povo, era uma das coisas com as quais o poeta Belchior
trabalhava. Ele tinha muita consciência dessa característica de seu trabalho e o
projetava exatamente para isso. Desejava se comunicar com as massas e assim
levar o seu recado direto em textos com narrativa sem grandes metáforas e que
atingem como flechas o alvo desejado.
Vejamos essa sua colocação na entrevista que deu logo no início da
carreira: “ Eu não quero envernizar o
folclore, eu não quero fazer o que o povo faz muito melhor do que eu e
principalmente porque eu defino música popular como aquela que está do lado do
povo. Não somente aquela que vem das camadas mais baixas da população ou das
camadas marginais. Eu defino a música popular de uma forma ideológica, é aquela
que está do lado do povo. É aquela que fala das desesperanças, das utopias, das
vicissitudes, dos ideais, dos trabalhos, dos sonhos, das conquistas do povo,
então essa é uma música popular. Então eu trabalho em cima disso. Povo é uma
coisa muito grande, (Belchior em entrevista a Wofenson), publicado por Josy
Teixeira em sua tese de doutorado na USP.
Suas
observações me foram muito úteis na minha formação. E procurei utilizar na
minha produção. Não podia perder a oportunidade de absorver as suas tiradas
geniais. “Isso não pode ser atribuído ao acaso, porque de um lado o número dos
loucos é relativamente bem pequeno, por outro lado porém porque um indivíduo
genial é um fenômeno raro, para além de qualquer avaliação normal, e que
aparece na natureza somente como a maior das exceções;” (SHOPENHAUER).
Uma das características dos compositores
de minha geração, vindos do Ceará, é que sempre se buscou “formas e temas
perdidos no passado brasileiro e cearense”, mas, fundindo com novas
experiências que pudessem concorrer dentro do mercado musical. Eu procurava
ouvir a todos e tirar o melhor de cada um no amadurecimento de minha música e
na abertura de minha mente. No dizer de Antonio José Brandão no texto escrito
para o livro “MASSAFEIRA – 30 anos”, temos: “Na sua luta, os artistas pretendiam
isolar e evitar a folclorização supostamente imposta pelo Movimento Armorial e
pela fidelidade ao forró tradicional, exigida por muitos. Quase todos os
teóricos não compreendiam que o forró tradicional foi novo e revolucionário em
seu tempo. Tendiam a eternizá-lo pela forma como tendo surgido não do suor das filas
às portas das gravadoras, emissoras, revistas e jornais, mas sim dos suspiros
românticos da flor do mandacaru. Não percebiam que estavam sendo reacionários.
Ou, o que é ainda pior, estavam patrulhando.” (BRANDÃO. MASSAFEIRA - 30 ANOS.
Fortaleza Edições Musicais 2010. p91).
A nossa parceria “CANÇÃO DE GESTA DE UM
TROVADOR ELETRÔNICO” (Jorge Mello e Belchior), tem cunho biográfico. Pois
apresenta a história de todos nós que deixamos nosso canto lá no interior (no
nosso caso o interior nordestino, eu de Piripiri no Piauí e meu parceiro, de
Sobral no Ceará), para cair na estrada e terminar na cidade grande. O texto
explica muito bem essas três etapas. Pois tem três estrofes onde a primeira te
coloca lá na origem, mas, recebendo as influências do rádio, do cinema e do
disco por meio do alto falante que toda tarde e parte da noite nos informava
dos acontecimentos das “terras civilizadas” por meio da amplificadora estrategicamente
colocada no alto da torre da igreja ou no alto da cumeeira da sala de projeções.
A segunda estrofe descreve a “estrada tirana” e suas armadilhas e o sabor de
suas aventuras. Por fim na terceira estrofe temos a cidade grande e seus
desafios, nos colocando em localidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. Vejam
o texto:
CANÇÃO DE GESTA DE UM TROVADOR
ELETRÔNICO
(Jorge Mello e Belchior)
O som do alto falante
Rolava e me dava um toque.
E Chuck Berry berrando
em sua guitarra, era um choque.
Cometas Halley passando,
astros no pó de Woodstock,
cabeças, pedras rolantes,
JIM, Jimi, John, Janis Joplin
E a moçada do subúrbio,
Cinemas, topetes, motos...
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Caí na estrada tirana:
(A juventude é um dom!)
garotas, sonhos, mil transas,
como dar bandeira é bom!
Olhando a cidade grande,
cheia de fúria e de som;
querendo ser uma estrela
de sexo, lazer e neon...
Cidade grande é uma droga
mas o rock dá o tom.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
São mil milhões de habitantes
deste parque industrial:
negros, mulheres, menores
- filhos da crise geral –
iguais pela mesma bomba
que vai cair no quintal.
Ídolo e Deus dos esgotos
a musa urbana me fez.
Meu sucesso é saber disso
e bater tudo pra vocês.
Rock, rock, rock, rock’n’roll!
Rock, rock, rock, rock’n’roll!ssa
Para minha felicidade, essa canção passou
a ser uma daquelas músicas que se fixou no repertório dos shows do
amigo/parceiro. E em virtude disso teve outras gravações, principalmente na
produção de discos gravados ao vivo, como é o caso do álbum “UM SHOW – 10 ANOS
DE SUCESSO”, de 1987. Outra notoriedade da obra é que ela foi a escolhida para
a abertura dos shows que o Belchior apresentava por todo o mundo, durante
muitos anos. E que teve um clip produzido de altíssimo nível apresentado pelos
programas de TV. Era o Belchior roqueiro se manifestando. Também a obra citada,
foi gravada por mim e por vários outros intérpretes. Um sucesso!
A nossa produção não era engessada nos
moldes e formas tradicionais de composição, como acontecia em Pernambuco com o
frevo, engessado, congelado e embalsamado por décadas e décadas, ao contrário
do que fizeram os baianos que levaram o frevo para si e o “desbundaram” como
bem entenderam com suas guitarras e seus trios elétricos. Compomos canções em
várias vertentes. Na realidade sempre abri meu leque. Trabalho melodias até em
modos como o mixolídio, utilizando instrumentos eletrônicos da época, como os
“mugs”, “escaners” e outros, basta ver
meus arranjos em canções como: “DENTRO DE MEUS OLHOS”, “ A NATUREZA REZA”, e outras...! Como curiosidade informo que fiz
um álbum intitulado “UM TROVADOR ELETRÔNICO”, onde nos shows da temporada, não
levei músicos para o palco e sim, anunciava a banda formada por computadores e
outros instrumentos eletrônicos, cada um sobre uma cadeira (como se fossem os
músicos ao vivo, só que eram máquinas), com os nomes: Raimundo, Mundo, Mundão,
Mundinho e Mundoca. Apenas instrumentos eletrônicos, executando os arranjos e o
acompanhamento do show como se músicos em pessoa fossem. Era um momento do mais
fino humor no meu show naquela temporada em fins de 1980. Uma delícia. Viajei
com o show por todo o país e fui com esse espetáculo até Cancum no México.
Belchior gravou canções em parceria comigo
também criadas na forma do raggae, country e blues. E
todas essas formas me pareciam cômodas e confortáveis. Nunca senti a
necessidade de criá-las como formas brasileiras tradicionais como o baião,
xotes ou maracatus. Quando fiz aboios e gravei aboios, não falei de bois ou
currais, mas, tratei de falar da minha realidade na cidade grande, estava no
Rio de Janeiro em 1972, como fiz em “KITCHENET” (um aboio), cujo texto é:
“A minha cozinha é vizinha da
porta da rua, ê, ê
E já nem sei se posso é chamar de
rua,
o corredor, o corredor do oitavo
andar do Edifício Central...
Mas, inda estou por aqui,
pessoal:
Com esse mesmo olhar, normal,
fatal, igual...
de quem mora e vive, de quem mora
e vive nessa capital...!”
REFERÊNCIAS ENCONTRADAS NA OBRA
DE BELCHIOR:
“Não existe em mim simulação alguma,
mostrando-me eu por fora o que sou no coração.” É o que pretendo fazer. Falar
das obras que meu parceiro tão inteligentemente homenageava os autores da
literatura universal e nacional.
Na obra de Belchior há inúmeras homenagens
aos clássicos da literatura universal e também da música popular brasileira. Em
todos os seus álbuns, se pode testemunhar referências aos autores clássicos ou
a suas obras. Logo no primeiro álbum de 1973. Bel inicia com a canção “Mote e
Glosa”, onde mostra conhecer o termo “mote”, sentença, expressa em um ou mais
versos da glosa (poesia em que cada estrofe termina por um dos versos de um
mote). Mostra que tem intimidade com a poesia dos repentistas por ser a glosa
uma das formas clássicas dos desafios de repentes. Nesse mesmo álbum encontramos
a canção “A Palo Seco”, uma homenagem a João Cabral de Melo Neto na escolha do
título da canção. No seu poema o poeta pernambucano repete o termo por várias
vezes o definindo. Apresento uma das estrofes do belíssimo poema A PALO SECO de
João Cabral de Melo Neto, como exemplo:
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
Nas formas escritas das canções do álbum
MOTE E GLOSA da gravadora Chantecler estão claras homenagens aos poetas concretistas, irmãos Campos e aos
compositores Gil e Caetano que tão bem utilizaram poemas concretos em suas
composições. Basta a leitura das letras de: MOTE E GLOSA; BEBELO; MÁQUINA;
CEMITÉRIO, sem precisar dar como exemplo a distribuição da letra de NA HORA DO
ALMOÇO. Todas essas canções citadas, são apenas da autoria de Belchior.
Saliento que esse assunto foi tratado com
maestria na tese de doutorado de Josy Teixeira, leitura que muito me agradou
ler, falei isso a ela. E indico aos interessados na matéria sempre que posso.
Vou fazer aqui um pequeno resumo do que
pretendo explorar nesse ensaio:
No segundo álbum ALUCINAÇÃO (Belchior), de
1976, o poeta alencarino dialoga com vários clássicos e com os ídolos da nossa
MPB. A canção que dá nome ao LP, comenta o modo de vida e canções de Gilberto
Gil, que naqueles tempos estava envolvido com macrobiótica e sabedoria
orientais, e gravou de sua autoria a canção “ORIENTE”, e depois gravou sua
música “EXTRA”, em que diz que espera “algo mais”. Belchior abre sua canção
afirmando: “Não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem
no algo mais...” adiante arremata: “nem nessas coisas do oriente, romances
astrais. A minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é experiências
com coisas reais.”
Em uma entrevista que Gilberto Gil deu a
Ana Maria Bahiana publicada no jornal O Globo de 1977, sobre a acusação de que se tornara um
alienado em suas produções mais recentes e pós tropicalismo ele diz: “Isso já
vem nesses últimos anos desde que voltei da Inglaterra, com insinuações mais ou
menos evidentes e frequentes de que eu estaria alienado, de que teria abdicado
de uma posição de combate e não sei o que. Na época do Refazenda, já teve isso, e mesmo antes, na época do Expresso 2222, a macrobiótica era fuga e
tudo. Quer dizer, isso já vem esse tempo todo e vem já como um reflexo do
tropicalismo que foi assim o momento da grande desconfiança conosco, comigo
principalmente (In. BAHIANA, 1980, P 64 E 65).”
Por outro lado o Belchior em entrevista na
Revista POP, ao ser perguntado sobre sua visão de misticismo, oriente, ioga,
responde: “ Sou completamente desinteressado. Não acredito, não quero nenhuma
nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais preocupado com toques
imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões.”
Como diz Belchior, tudo é proibido, “aliás
tudo é permitido quando ninguém nos vê”...
Também nesse mesmo álbum de 1976,
Belchior, demonstrando intimidade com a literatura popular do cordel, na canção
SUJEITO DE SORTE (Belchior), quando cita trechos do livro “Poeta do Absurdo” de
Orlando Tejo. Livro que tenta fazer a biografia do poeta cordelista paraibano
Zé Limeira. O trecho citado por Bel é parte do poema “Poesia dos cachorros” (Zé
Limeira), cujo verso original diz:
“Eu já cantei no Recife
Dentro do Pronto-Socorro
Ganhei duzentos mil réis
Comprei duzentos cachorro
Morri no ano passado
Mas esse ano eu não morro.”
O texto da canção do bardo cearense assim
trata a matéria:
SUJEITO DE SORTE
(Belchior)
“Presentemente eu posso me
considerar um sujeito de sorte
porque, apesar de muito moço, me
sinto são, salvo e forte.
E tenho comigo pensado: Deus e
brasileiro e anda do meu lado.
E assim já não posso sofrer no
ano passado.
Tenho sangrado demais, tenho
chorado pra cachorro.
Ano passado eu morri mas esse ano
eu não morro.”
Belchior sempre foi um leitor contumaz,
obstinado. E como tinha muita intimidade com os livros, em especial com aqueles
volumes que mantinha em sua biblioteca particular, sabia de cor o lugar de cada
um e se exibia para os amigos ao encontrar cada um dos livros, de costas, sem
olhar a prateleira onde os livros eram dispostos, sempre bem arrumados. Também
se exibia, mostrando como é dotado de memória especial. É que muitas vezes
pedia aos presentes que lá apareciam para nos visitar no escritório da PARAÍSO
DISCOS, que escolhessem qualquer livro, o abrisse e lesse determinado trecho
escolhido aleatoriamente. Essas pessoas iam à prateleira e escolhiam
determinado livro, abria em página indeterminada, qualquer uma que fosse,
iniciava a leitura e o Belchior de cabeça à sua frente continuava o texto de
onde o outro parava sua leitura. Um verdadeiro show de mágica. Essa façanha me
espantava sempre que via. Não tenho esse tipo de memória nem cerebral, nem
visual. Por vezes, o parceiro, dizia a página em que se abrira o livro. Uma
coisa fantástica, incrível, inacreditável. Eu um dia visitando a casa do Sério
Pinheiro e Luciene Simões, em Fortaleza, pessoas que há anos me recebem para um
sarau cultural, musical, literário, programa que já se tornou tradicional, pois
repetido dezenas de vezes a cada presença minha na capital cearense, ouvi esse
mesmo relato dos amigos contemporâneos, presentes naquele evento. Eram eles: Galba
Gomes e João de Paula. E imediatamente confirmei isso, por ser testemunha de
muitos desses momentos gloriosos da convivência que tive com o poeta Belchior.
Relembramos essas facetas incríveis com que o poeta se exibia aos amigos...!
O reflexo dessa intimidade com livros e
com os autores da literatura universal é flagrante na obra de Belchior. Podemos
citar dezenas de obras com referências textuais a esses autores e suas obras,
notabilizando as criações do poeta Bel, como uma obra cheia de citações dos
clássicos. Faceta que só mesmo um conhecedor daquela literatura sabe fazer. E o
faz porque leu e as mantém de memória. Faceta única sem paralelo...!
Partindo desse esclarecimento, vejamos
algumas das obras do Belchior que têm referências textuais de algumas obras
clássicas da literatura brasileira e universal. Primeiro tratarei de algumas
obras em que sou parceiro, pois tais citações foram colocadas na minha presença no ato de criação
dessas obras. Quando criamos a canção NOTÍCIA DE TERRA CIVILIZADA (Jorge Mello
e Belchior), Belchior me apresentou o texto que diz:
“Lido e corrido relembro
Um ditado esquecido:
“(...) antes de tudo um forte”.
Com fé em Deus um dia
ganha a loteria
pra voltar pro Norte.
Temos aí uma referência ao livro “Os
Sertões” de Euclides da Cunha, quando escreveu: “O nordestino é antes de tudo
um forte.” A citação está entre aspas e
indica que a frase dita pela metade, vem de um esquecimento do personagem, e
que sendo dita assim, prova que o co-autor, não se esqueceu, e que lembra muito
bem da oração por inteiro.
E
não acaba por aí, porque encontramos ainda só nas minhas parcerias com Belchior,
inúmeras referências à literatura universal: Na canção PLOFT (Jorge Mello e
Belchior), há referências a Eduardo Galeano e seu “Las venas Abiertas de
Latino-América”. Vejamos:
“O Nordeste sentado na esquina do mapa OLVIDADO
DE LOS REYES DEL MUNDO EM UM CIGLO DE LUCES,
se mira no Atlântico: Amérias, Africas,
Índios, pobres e jovens: tudo um negro blues.
A dor do Nordeste, a cor do Nordeste;
(deste e daqueloutro que homem não vê!)
LAS VENAS ABIERTAS DE LATINO-AMÉRICA:
mil poetas: primatas que abraçam o ET.”
Em O NEGÓCIO É O SEGUINTE (Jorge Mello e
Belchior) há referências a Augusto dos Anjos quando dizemos:
“Engenho (e arte) do Pau-d’Arco...
‘Tome Dr., essa tesoura e... corte”.
Ainda tratando dessas homenagens à
literatura brasileira, posso indicar a obra musical de Belchior LIRA DOS VINTE
ANOS (de Belchior e Francisco Casaverde), canção gravada no álbum ELOGIO DA
LOUCURA de 1988, onde ele faz uma
referência ao livro de Álvares de Azevedo (Manoel Antônio), poeta, dramaturgo e
contista, filiado à escola representada por Byron na Europa. A referência de
Belchior está logo no título de sua canção que tem o mesmo título da obra de
Álvares de Azevedo, pois “Lira dos Vinte Anos” é o livro publicado postumamente
em 1853, com poemas do autor, dentre eles
Noite na Taverna.
Agora vamos tratar das obras de Belchior
que homenageiam a literatura universal:
vamos começar pelo álbum já citado ELOGIO DA LOUCURA. O título do álbum
é o mesmo título da obra de Erasmo de Roterdan que viveu entre 1466 e 1536. O
livro “Elogio da Loucura” foi editado em 1509. Uma sátira na qual os poderosos
da época em especial os homens da Igreja, são tratados com a ironia do
escritor. Esse é sem dúvida um dos mais influentes livros da civilização
ocidental. E deu nome ao álbum de Belchior do ano de 1988. Nesse álbum está uma
das canções de Bel que mais gosto. Balada de Madame Frigidaire (Belchior). Uma
declaração de amor pela nova geladeira. Incrível...! Surpreendente. Vejam o
refrão:
“Mister Andy, o papa pop,
E outro amigo meu xarope
Se cansaram de dizer:
‘Prá que Deus, Dinheiro, Sexo,
Ideal, Pátria, Família,
Se alguém já tem frigidaire?’
É Freud rapaziada,
Vive a cair na cantada
De um objeto mulher.”
Na canção VELHA ROUPA COLORIDA (Belchior),
uma das obras que teve mais sucesso na carreira do cantor/compositor, temos
também referências do autor à literatura universal como se pode ver a homenagem
ao escritor americano Edgar Allan Poe, nascido em Boston em 1809 e falecido em
Baltimore em 1849, gênio atormentado de imaginação estranha. Publicou poemas,
contos e novelas que o tornaram muito popular. Na canção de Belchior citada,
temos referências ao texto de “O Corvo” de Poe.
Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho: Black bird, Assum-preto, o que se faz?
Haven never haven never haven never haven never haven
Assum-preto, passáro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven never haven never haven
Black bird, passáro preto, passáro preto, me responde
O passado nunca mais
Eu pergunto ao passarinho: Black bird, Assum-preto, o que se faz?
Haven never haven never haven never haven never haven
Assum-preto, passáro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás
Haven never haven never haven never haven never haven
Black bird, passáro preto, passáro preto, me responde
O passado nunca mais
Na álbum
intitulado “TODOS OS SENTIDOS” de 1978, temos várias referências e citações de
Belchior, onde posso indicar “To be or not to be”, citado na obra TER OU NÃO
TER (Belchior), que é uma homenagem a William Shakespeare, nascido em 1564 em
Stratford e morto em 1616. Foi autor, ator e co-proprietário do Globe Theatre,
e que tornou-se célebre. Escreveu principalmente para teatro, mas, também
escreveu sonetos.
Nesse álbum temos referências a Jorge Benjor
na canção COMO SE FOSSE PECADO (Belchior), e outra referência a canção “Acorda,
Maria Bonita” (de Antonio dos Santos), e também à canção “Até Amanhã” (de Noel
Rosa) na obra ATÉ À MANHÃ (Belchior). Vejamos:
“Até
amanhã
Se
o homem quiser – mesmo se chover
Volto
pra te ver mulher.
Até
à manhã.
Se
houver amanhã – se eu vir à manhã
Mando
alguém dizer como é.
E
em “COMO SE FOSSE PECADO vejamos esse trecho:
ACORDA AMOR
O
sono acabou Maria bonita
Vem
fazer o café.
O
homem comum inda nem levantou
Mas
a polícia já está de pé.”
Na
canção TUDO OUTRA VEZ, Belchior, faz referências ao livro “A Normalista” de
Adolfo Caminha e também à música NORMALISTA (Benedito Lacerda e David Nasser),
Vejamos:
“Gente de minha rua! Como eu andei distante!
(Quando eu desapareci, ela arranjou um amante.)
Minha normalista linda! Ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar.”
Belchior referencia a várias obras célebres em suas canções. Na
canção VÍCIO ELEGANTE,(Belchior e
Ricardo Bacelar), obra que dá o título ao CD gravado em 1996, ele cita o poema
“Flores do mal” de Charles Baudelaire, nascido em Paris em 1821. O poema citado
foi escrito em 1857. Vejamos:
“Versos perversos das ‘Flores do mal’
nesse romance, fantasia oriental
cenas obcenas? Não! Apenas de amor!
Que estou navegando numa tela multicor.
Belchior também cita outro clássico da literatura logo adiante nessa
mesma canção. Apresenta trechos do poeta português Fernando Pessoa, nascido em
Lisboa em 1888. Pessoa criou heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro de Campo e
Ricardo Reis, dos quais inventou biografias distintas. Vejamos na obra citado do poeta cearense a
referência ao Pessoa:
“O viver é de improviso
Faz sua própria Lei
Mas navegar é preciso:
Vou mandar-te um Lay-lady-lay”
Outra referência do poeta Belchior é encontrada na canção SE VOCÊ
TIVESSE APARECIDO (Belchior e Gracco), numa referência ao poeta, pintor e
gravador inglês Willian Blake, nascido em Londres em 1757, com citações de suas
obras “Canções de Inocência” e “Canções de Experiência”, ambos escritos em
1789. Vejamos:
“Se você tivesse aparecido
em minha adolescência,
canção blake de inocência
amor, quem não teria ido e vivido
com Byron, o bardo da gangue
do “le me perish young“
Se você tivesse aparecido esta
droga de
existência se mudaria em viver
eu coração (traído) bandido,
canção blake de experiência
revelaria seu ser.”
em minha adolescência,
canção blake de inocência
amor, quem não teria ido e vivido
com Byron, o bardo da gangue
do “le me perish young“
Se você tivesse aparecido esta
droga de
existência se mudaria em viver
eu coração (traído) bandido,
canção blake de experiência
revelaria seu ser.”
Na
canção AMOR DE PERDIÇÃO, a homenagem do poeta Belchior é explícita a Camilo
Castelo Branco, polígrafo e romancista português nascido em Lisboa em 1825. Um
mestre do idioma com 262 obras. Representa o apogeu do romantismo. “Amor de
Perdição” é sua obra prima. A obra homônima do compositor cearense está em seu
álbum “Elogio da Loucura” de 1988.
No álbum ”Todos os Sentidos” de 1978,
Belchior trás uma das canções que mais faz referências em sua obra à obras
clássicas da literatura universal. Sua canção DIVINA COMÉDIA HUMANA, segundo
ele feita em Teresina em 1976, homenageia em suas referências a quatro grandes obras:
1- “Divina Comédia” de Dante Alighieri, poeta italiano nascido em Florença em
1321, que por ser o criador dessa obra citada é considerado o pai da poesia
italiana; 2 – “Comédia Humana” de Honoré de Balzac, escritor Frances nascido em
Tours em 1799. Sua obra citada é uma série de romances que trata da sociedade
francesa ao fim da monarquia. Escreveu também contos; 3 – “A comédia humana” de
Willian Saroyan; e 4 – “Via Lactea parte XIII” de Olavo Bilac, nascido no Rio
de Janeiro em 1865, parnasiano, rígido na forma. Sua poesia tem várias fases,
marcada ora por um lirismo arrebatado e sensual e depois pela exaltação épica e
por vezes pelo pendor à meditação. Eleito o Príncipe dos Poetas Brasileiros. A
poesia do Bilac é citada na obra literalmente no decorrer da música.
Na obra AGUAPÉ (de Belchior), publicada no
álbum “OBJETO DIRETO” pela Elektra em 1980, o autor explica na contra-capa:
“AGUAPÉ Epígrafe de Castro Alves, Belchior, Participação Especial: Raimundo
Fagner.” É que a obra faz referência ao poema “A Cruz da Estrada” de Castro
Alves.
Eu e
Belchior basicamente vivemos durante nosso trabalho em sociedade, dentro de uma
biblioteca. A dele montada na Paraíso Discos (gravadora em que éramos sócios e
dirigida por mim) e a minha biblioteca na JMT Produções (empresa que tinha em
sociedade com minha mulher Teca Melo). A leitura era atividade constante em
nossa vida. Acontecia entre um show e outro, também entre as gravações nos
estúdios, porque como produtor de discos das duas empresas, produzi mais de
duas centenas de álbuns somando mais de vinte mil horas de gravação (isso
contando apenas o tempo de gravação dos discos que produzi sem falar nas
trilhas para publicidade e para cinema e teatro - uma centena delas. Como sei
desse volume de horas de produção dos discos? Porque nas fichas de produção, um
dos dados registrados é o gasto com pagamentos de estúdios. Esse serviço era
contratado, e cobrado por tempo de gravação. Custava muito caro a hora de
gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para a gravação do álbum de seu
artista. Não tínhamos estúdio próprio. Assim eu sei exatamente quanto tempo
fiquei gravando. E nos intervalos, apenas lia...! E o resultado dessa leitura está presente na
obra. É verdade, há a referência da literatura brasileira e universal em toda
nossa obra. Belchior era profundo conhecedor dos clássicos da literatura e do
pensamento.
CAPÍTULO FINAL:
“Eu, por exemplo, acho
que, para conseguir liberdade, tem que se pulverizar o poder, diminuí-lo ao
máximo, ao ponto de todas as pessoas gerirem individualmente as suas vidas e
presença no mundo, não precisando de nenhum chefe de rebanho, mestre, religião.
Isso pode dar a ideia de que o meu trabalho não pretende tocar na política. Eu
não quero fazer uma música simplesmente falando sobre o divórcio. Eu quero
muito mais que isso. Não basta que o MDB vá ao poder. Eu quero que o poder não
mande em mim. Minha utopia é paradisíaca, edênica, dionisíaca. Eu acho mais
importante cuidar da felicidade das pessoas do que do Produto Interno Bruto. (Antonio
Carlos Belchior)”
As teses, teorias e outras impressões que
vi publicado, sobre o que teria acontecido com o poeta/parceiro para que ele
tomasse a decisão que tomou há mais de dez anos, essa misteriosa saída dos
palcos e de perto dos parentes e dos amigos, me levaram a sugerir a leitura de
momentos difíceis pelos quais passaram outros artistas importantes da música
popular brasileira. Ainda nos anos de 1974, foi publicado no Jornal OPINIÃO a
entrevista inédita de Chico Buarque quando perguntado sobre seu show e porque
tem feito poucas apresentações. Na entrevista ele diz:
“Agora, eu não estou fazendo show, mais.
Estou cumprindo alguns compromissos a duras penas, porque num show você é
conduzido a um troço que gera uma carga emocional diária e eu não tenho
estrutura para suportar. Foi por isso que eu me mandei, cancelei a temporada,
fui ao médico, fiz um check-up e resolvi que não estava bom. Eu me expunha
emocionalmente demais, e não só como artista, ai é que está o negócio. Se eu
entrasse num palco e me maquiasse, me vestisse e interpretasse alguma coisa,
legal. Em algumas músicas eu já conseguia fazer isso, um negócio que eu aprendi
com Caetano, sair um pouco como pessoa.”
Em outra entrevista, Luis Gonzaga Jr., se
diz preocupado com o Milton. Diz que o amigo não aguenta mais a exposição e o
assédio: “ Este país só vive tendo um
ídolo, um padrão, um modelo. E estão querendo por o Milton lá. O trono está
prontinho pra ele sentar”. E Milton, na mesma matéria assim se manifesta
adiante: “Eu, estou sentindo isso ó... faz tempo, já. Porque o engraçado é que,
para ter uma pessoa em evidência, parece que tem de derrubar outras, só pode um
de cada vez. E eu comecei a sentir isso, muitas perguntas sobre o que meu trabalho se propunha, a onde levava, muitas solicitações para que indicasse
caminhos, muitas comparações com a coisa dos outros. Com o trabalho do Caetano,
então, demais. E eu comecei a desconfiar, sabe como? Comecei a conversar isso
com o Gonzaguinha já faz muito tempo. E eu dizia sempre, e ainda digo, se for
realmente assim, eu tiro o time de campo, vou não sei pra onde, mas vou.”
Adiante ele ainda reforça incisivo: “Só
sei que não vou aceitar ser líder de ninguém,
nem ser estrela. Quero mais é dar um tempo,....” (Entrevista em O GLOBO, 26 de
dezembro de 1975).
Palavra de amigos:
. “Nunca esperei que as coisas que um poeta diz, e que as
pessoas assimilam, precisem ser verdades de alguém. É uma necessidade que o ser
humano tem, de que esse real da vida possa se dar um tempo e imaginar as coisas
de outra maneira. Essa é a função dos artistas. Eles precisam disso. E o povo
também precisa disso. Acho que ele fez isso. (
Fausto Nilo. Jornal O POVO 06/05/ 2017 Caderno VIDA &ARTE).
Outro amigo assim se
manifestou após a sua morte: “Assim o nosso gênio Belchior conseguiu, como um
manto unicrômico estendido feito a terra, toldar com tintas coloridas as suas
ideias, alcançando grande parte deste manto sobre o Brasil e América do Sul,
por ele tão decantada.
A sua alma atlântica e Latino-americana, gerada e acalentada no
calor e sentimentos tropicais, deverá ser mantida em nossas mentes, com
veneração ao seu especial cérebro, gerado e nutrido nesse sagrado chão cearense
por muito tempo.
Meu parceiro e
querido amigo Belchior parece um ser nascido nas Ilhas Fortunadas, onde a
natureza não tem necessidade nenhuma da arte, porque a sua própria arte da
poesia já lhe completa.
Quero lhes falar livremente
do parceiro, como dizia Erasmo de Roterdan: “”Que seria esta vida, se é que de
vida merece o nome, sem os prazeres da volúpia? Oh! Oh! Vós me aplaudis? Já
vejo que não há aqui nenhum insensato que não possua esse sentimento. Sois
todos muitos sábios, uma vez que a meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria.”(Luis
Augusto Castelo Branco Mourão).
“No dizer de
Shopenhauer, “... as melhores obras de arte, os mais nobres resultados do
gênio, permanecerão eternamente ilegíveis à maioria obtusa da humanidade,...”.
Resumo:
Eu e Belchior basicamente vivemos durante nosso
trabalho em sociedade, dentro de uma biblioteca. A dele montada na Paraíso
Discos (gravadora em éramos sócios e dirigida por mim) e a minha biblioteca na
JMT Produções (empresa que tinha em sociedade com minha mulher Teca Melo). A
leitura era atividade constante em nossa vida. Acontecia entre um show e outro,
Também entre as gravações nos estúdios, porque como produtor de discos das duas
empresas, produzi mais de uma centena de álbuns somando mais de 15 mil horas de
gravação (isso contando apenas o tempo de gravação dos discos que produzi sem
falar nas trilhas para publicidade e para cinema e teatro - uma centena delas.
Como sei desse volume de horas de produção dos discos? Porque nas fichas de
produção, um dos dados registrados é o gasto com pagamentos de estúdios, onde
registramos as horas gravadas para finalizar cada álbum. Esse serviço era
contratado, e cobrado por tempo de gravação. Custava muito caro a hora de
gravação num bom estúdio. Alugava-se um estúdio para a gravação do álbum de seu
artista. Não tínhamos estúdio próprio.
É
verdade, há a referência da literatura brasileira e universal em toda nossa
obra. Especialmente na obra só de autoria do Belchior e outros parceiros que
não eu. Na obra do poeta cearense como um todo há essas referências a dezenas
de autores clássicos como de Shakespeare, Allan Poe, Erasmo de Roterdan,
Álvares de Azevedo, Euclides da Cunha, Orlando Tejo, Augusto dos Anjos,
Baudelaire, Willian Blake, Camilo Castelo Branco, Dante Alighieri, Balzac,
Willian Sayoan e outros. Belchior era profundo conhecedor dos clássicos da
literatura e do pensamento.
Comentario final:
Caetano Veloso
publicou em sua “auto-biografia” VERDADE
TROPICAL: “Quando Rogério, ouvindo-me argumentar entusiasmado, provocou-me
dizendo que eu era apenas um apóstolo, e que Gil é que era o profeta,
pareceu-me que ele lia meus pensamentos mais recônditos. Eu me sentia
responsável por uma grande e bela tarefa, pois Gil e Gal (e também Bethânia, apesar de seu grito de
independência) necessitariam sempre de minha orientação, direta ou indireta,
mas a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo - e a partir de Gil.”
Assim eu sentia no
nosso “movimento”. A necessidade de se impor como uma nova mensagem, vinda de
mais ao norte do que falaram os baianos, na música popular. Para os músicos de
minha geração surgidos da universidade e dos bares, como o Bar do Anísio, o guru
era o Augusto Pontes, mas, para mim depois de chegar ao Rio de Janeiro, as
mensagens que mais me tocaram eram geradas pelo Belchior. Ele dava a mensagem
poética que norteava a minha direção. Da mesma maneira eu sentia, que a minha
importância era imensa para a existência do grupo num grande centro como o Rio
e São Paulo. Importância não só pela qualidade minha como artista, mas pelo meu
senso prático. Eu tinha emprego no Rio de Janeiro. Era do quadro de
funcionários da TV Tupy (Direção Musical). Tinha salário. Salvava a base da
sobrevivência, podia pagar onde o grupo morava. Em São Paulo, fui ensinar em
três faculdades de música: IMSP – Instituto Musical de São Paulo; FAP ART
(Faculdade Paulista de Artes) e Instituto MOZARTEUM. Além disso criei empresas
de produção e gravação de trilhas sonoras
para publicidade e para a produção de eventos, ainda em meados dos anos 1970.
De alguma maneira o Belchior, que como poeta me orientava para melhorar a
qualidade de meus poemas, sentiu que poderia ter em mim, uma força na
compreensão de outras facetas próprias e
necessárias à profissão de artista cantor e compositor. Vinha de minhas
iniciativas, o sonho da procura por independência da carreira. Independência
dos grandes grupos empresariais e de grandes gravadoras. A independência da
administração da própria obra. Hoje basicamente toda a obra do Belchior e a minha,
estão em editoras das quais somos o titular. O dono. Sonho de poucos...! E isso
começou lá atrás...!
Havia entre mim e
Belchior uma coisa especial que não se desenvolveu com os outros membros do
grupo. Havia um grau de intimidade diferenciada entre a gente. Muitas vezes, ao
terminar o expediente no escritório da PARAÍSO DISCOS, o parceiro se dirigia
para minha casa. Oportunidade em que ficávamos, eu ele e Teca horas a fio
assistindo filmes do Chaplin, rindo a se esborrachar de Bourvil, Louis de Funes,
Oliver Hardy e Stan Laurel. O tipo de coisa que não amadureceu a esse ponto com
os demais amigos e parceiros...! Mesmo depois
que deixei a empresa (Paraíso Discos) para cuidar da JMT (empresa minha e da
Teca), ele continuava a fazer essas visitas para momentos da mais pura
intimidade e alegria. Pouco antes do seu desaparecimento, em fins de 2006 e
início de 2007, ele me chamou ao escritório da PARAÍSO DISCOS, eu fui. Conversamos
e combinamos vir ao meu escritório logo em seguida. Ele comentou comigo que o
proprietário do imóvel onde funciona a gravadora lhe pediu o imóvel justificando
a venda do mesmo onde seria construído um prédio. Isso queria dizer que a casa
seria demolida. Ele precisava sair de lá. De pronto ofereci o galpão enorme que
há atrás de onde era meu escritório naquela ocasião, para que ele colocasse lá
o material da PARAÍSO e sua biblioteca.
Ele olhou tudo no ambiente do galpão fazendo anotações e enquanto fazia
isso traçou planos incríveis de ajustar ali um mezanino, sua biblioteca e
tornar aquele pedaço no seu “atelier”. Ficamos nessa conversa até escurecer. Eu
morava do lado. Fomos pra casa à noitinha e repetimos mais uma vez aquele
ritual de conversar e ver filmes por horas. Eu ele e a Teca a rir de tudo, de
dezenas de piadas tantas vezes repetidas, e de todas as imagens dos filmes que
escolhíamos ver. Uma delícia!
Foi a última vez que o vi. Mas, ele me ligou em
três oportunidades depois do seu recolhimento. Ligações durante o ano de 2007.
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