quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mais um capítulo do meu livro DIREITO AUTORAL: DA TITULARIDADE

2 -  BREVE HISTÓRICO

     Nos ensina Bittar em sua obra Direito de Autor que  a descoberta da imprensa permitiu a instituição de privilégios em favor dos editores pelos monarcas. Permitia-se então, a exploração econômica de uma obra literária durante um  período de dez anos.
    O primeiro texto legal que reconhecia tal direito foi publicado em 10.04.1710, por ato da Rainha Ana da Inglaterra para incremento da cultura. Por insuficiência do sistema e para assegurar algum tipo de remuneração aos autores ela promulgou o Copyright Act, o qual tornou-se conhecido como Estatuto da Rainha Ana. O Copyright Act foi a primeira norma legal que reconheceu o copyright em favor do autor como um direito individual, um direito de propriedade.
     A este ato, muitos outros se seguiram, tais como:
-          a inserção de norma autoral na Constituição dos Estados Unidos de 1783;
-          as decisões do Conselho do Rei;
-          as Leis de 13/07/1793 e de 19/07/1793 na França;
-          a Convenção de Berna, que foi a primeira que contou com a adesão de outros países (1886).
-          o continente americano se fez presente pela primeira vez no Congresso de Direito Internacional Privado de Montevidéu de 1889.
     Os direitos autorais estão previstos como direito fundamental do cidadão pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948, como vemos no artigo XXVIII, item 2, abaixo transcrito:
     “Todo homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”.
     Esse direito também é consagrado no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16/12/66, que no seu artigo 15 estabelece que os Estados participantes reconhecem a toda pessoa o direito de “beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda  produção científica, literária ou artística de que seja autor”.
     No Brasil, os primeiros a serem contemplados com a exclusividade de exploração foram os professores do primeiro curso jurídico de São Paulo e de Olinda.
-          Os professores daqueles cursos escreveram compêndios que seriam usados no aprendizado dos alunos, trabalhos que o governo  iria “imprimir e fornecer às Escolas, competindo aos seus autores o privilégio exclusivo da obra, por dez anos” (art. 7º da Lei que criou os cursos em 11/08/1827);
-           A Constituição de 1891 inclui o direito autoral entre os direitos individuais (art. 72, §26);
-          depois a Lei 496 de 01/08/1898 definiu o direito autoral sobre obras literárias científicas e artísticas;
-          As Constituições seguintes mantiveram esse direito como uma das liberdades públicas, excetuando a Constituição de 1927. Constitucionalmente o direito autoral aparecia entre as liberdades públicas, exibindo o seu aspecto patrimonial e sua exclusiva utilização pelo autor, transmissível por herança.
-          Nosso Código Civil coloca a matéria dentro dos direitos de propriedade (arts. 649 a 673) e regulou no âmbito dos direitos obrigacionais os contratos especiais de edição (art. 1346 e ss) e de representação dramática (art. 1359 e ss).
-               O Decreto nº 4.790/24 definiu os direitos autorais, e a partir daí, muitas normas foram criadas para regular a matéria antes que tivéssemos a atual Lei 9.610/98 que rege o tema. Com a participação do Brasil na Convenção de Berna, e graças ao desenvolvimento das comunicações e o surgimento da jurisprudência, o Direito Autoral exigiu leis próprias. Em decorrência das necessidades práticas, amadurecera o suficiente, tornando-se um ramo autônomo do direito[1]. 
     A Constituição Federal de 1988 apresenta inovações sobre o tema  nos incisos XXVII e XXVIII do art. 5º, (abaixo transcritos) quando trata  dos direitos fundamentais da pessoa:
   
     “Art. 5º (...)   
     XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
     XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:
a)      proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
b)      o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;”

     No Brasil, a luta pelos direitos autorais foi muito grande até se chegar à atual lei. Pouco a pouco as vitórias foram sendo conquistadas, como a que se observou quando da lei anterior nº 5.988/73, que, entre outras coisas, centralizou a arrecadação e a distribuição do direito autoral instituindo o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais).

     “Art. 115. As associações organizarão, dentro do prazo e consoante as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição dos direitos relativos à execução pública, inclusive através de radiodifusão e da exibição cinematográfica, das composições musicais ou lítero-musicais e de fonogramas.”

         Antes da vigência dessa lei os compositores brasileiros organizavam-se em associações com objetivos diversos do que acontece hoje.  Naquela ocasião estas entidades  arrecadavam e distribuíam os direitos autorais de seus associados, o que quer dizer que não havia unificação na arrecadação desses direitos, nem a presença do Estado. Cada associação de compositores arrecadava os direitos autorais sobre o uso e fruição das obras musicais diretamente das várias fontes do mercado (clubes, casas noturnas, hotéis etc.) e distribuíam a seus associados. A Lei 5.988/73 criou o ECAD objetivando uma arrecadação única e uma distribuição, esta sim, por meio das sociedades de compositores, que então distribuíam a seus associados. Também a referida Lei criou o Conselho Nacional de Direitos Autorais (CNDA), que tinha como atribuição julgar, intermediar e mesmo dar a última palavra antes do judiciário.
        Com a chegada de uma nova geração de compositores com formação universitária, vinda dos festivais de música organizados nos veículos de massa em meados da década de 60, a luta pelos direitos autorais acirrou-se muito mais. Vários deles se interessaram e participaram desse ambiente de cujo movimento resultou no surgimento da SOMBRÁS[2]. No dizer de Marcus Vinícius Andrade (Presidente da AMAR – Associação de Músicos Arranjadores e Regentes), “a geração Sombrás, espremida entre a emergência de uma vigorosa industria musical e o anacronismo da gestão dos direitos de autor no país, soube construir, pela primeira vez em nossa história, um discurso coerentemente articulado e de caráter coletivo, sobretudo[3].”
     Mais adiante ele reforça: “Com a Sombrás, a lamúria individual foi substituída pela reivindicação coletiva, sintonizada, ademais, com as primeiras demandas políticas da sociedade civil da época. Daí resultava ser, a Sombrás, o único segmento a possuir um novo projeto para o direito de autor em nosso país—e não foi por outra razão que ela foi chamada a ser interlocutora do Estado, mesmo durante o difícil período do arbítrio”[4].
     A AMAR, junto a outras entidades artísticas participou do trabalho de elaboração do projeto de uma nova lei autoral para o país. Travou-se uma campanha dura dos autores contra o “lobby” das gravadoras e dos editores pela aprovação da nova Lei autoral. O Projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados em 1988 mas foi retido pelo então ministro da Cultura José Aparecido sob o argumento de que era preciso ouvir todas as partes interessadas, inclusive os próprios editores e produtores fonográficos que o projeto excluía do campo autoral. No ano seguinte a própria AMAR o encaminhou diretamente à Câmara dos Deputados por intermédio do então deputado José Genoino, do PT de São Paulo. O projeto chamado  “projeto Genuino”, reforçava e ampliava o campo de ação da lei anterior, dava substância legal à categoria dos criadores brasileiros incluindo os direitos conexos de intérpretes e músicos e diferenciava os direitos de natureza industrial dos de natureza comercial, a saber, os direitos dos produtores fonográficos e os relativos aos editores. Também definiu autor como pessoa física criadora de uma obra artística ou de uma interpretação artística dessa obra.
     Ainda em 1989 esses compositores que vieram dessa geração com formação acadêmica já pensavam e sonhavam com um direito autoral voltado para um direito moral, onde a titularidade do direito de autor fosse exclusivamente da pessoa física como constava na recente CF/88.
     Antes da luta pela atual lei dos direitos autorais, a AMAR já havia enfrentado outra de grande importância. Lutou contra o teor da Lei 4.944/66 que destinava 50% do montante recolhido a título de direitos conexos aos produtores fonográficos. Já naquele ano, 1985, Marcus Vinícius de Andrade não entendia a injustiça vinda do  fato de que direitos decorrentes da criação e da execução eram apropriados no seu montante mais significativo por quem apenas custeara as produções fonográficas e não realizara nenhum ato criativo.
     A AMAR publicou os seguintes dados para justificar a defesa de sua posição:

     1) Dos 112 titulares de maior renda, 69 tinham sido ‘pessoas físicas’ e 43 ‘pessoas jurídicas’ em fevereiro de 1988, enquanto 70 haviam sido ‘criadores’ e 42 ‘empresas’ no mês seguinte;
     2) Em fevereiro de 1988, os 14 titulares mais bem aquinhoados tinham sido ‘gravadoras, editoras , etc. (quase todas multinacionais)’ aparecendo o primeiro autor na 15ª posição, ...
     (...)  
     4) Finalmente, do total líquido das 112 maiores distribuições de fevereiro (Cz$ 38.999.849,78), cerca de 70% (Cz$ 27.334.358,40) tinham sido pagos a ‘gravadoras, editoras, etc’, mantendo-se essa porcentagem praticamente inalterada em março” (Direitos Já 8, jul/ago./1988 in Morelli).

     Com a CF/88 a AMAR saiu logo em defesa de seus fundamentos fazendo oposição entre os direitos autorais relativos à pessoa física e aqueles de pessoa jurídica, argumentando em favor da nova lei que pessoas jurídicas não deviam partilhar de direitos que resultassem da criação de pessoas físicas.
    Por ter sido o projeto retido por um então Ministro de Estado, foi estrategicamente retirado por seu proponente levando-se em consideração que o clima naquela legislatura, em que o comandante da nação era Fernando Collor de Mello, não inspirava confiança. Optou-se por esperar a eleição de novos representantes no Congresso. O projeto só foi reapresentado à Câmara em 1992 após as eleições.
     Com o governo Itamar Franco mobilizaram-se Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Marcus Vinícius para buscar o apoio do ministro da Cultura Antonio Houaiss objetivando a aprovação do projeto já em tramitação no Congresso.
      Tratamos de contar um pouco da história desse momento, para se ter maior clareza da luta daqueles que se empenharam para que o Brasil tivesse uma lei que atendesse adequadamente ao autor. Como vemos foi uma longa luta que se estendeu de 1992 a 19 de fevereiro de 1998, quando finalmente o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a nova lei autoral (Lei 9.610/98), que entrou em vigor em julho desse mesmo ano.
     Essa lei consagrou o princípio de que autor é apenas a pessoa física. A legislação autoral brasileira fora adaptada à última revisão das Convenções de Berna e de Roma de 1896.



[1] Citemos algumas leis mas não nos deteremos a estudá-las por não ser este o objeto de nosso estudo:
-          Lei 4.944 de 06/04/1966 sobre direitos conexos de artistas e intérpretes, executantes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão;
-          Lei 5.250 de 19/12/1967 regulando a liberdade de manifestação do pensamento e da informação;
-          Lei 5.536 de 21/11/1968 sobre a censura de obras teatrais e que criou o Conselho Superior de Censura;
-          Lei 5.805 de 03/10/1972 para preservar a autenticidade de obras literárias de domínio público;
-          Lei 5.988 de 14/12/1973 sobre direitos autorais e os conexos. Essa Lei seguiu a orientação européia, disciplinando em leis apartadas, os direitos autorais, libertando-o dos códigos.
[2] “Uma forma de organização inédita, com o papel exclusivo de representar os músicos e de pressionar o governo para a solução de seus problemas”, como publicou o Jornal do Brasil de 14/11/1975.
[3] Andrade in Morelli, 2000:11.
[4] idem.

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