terça-feira, 14 de junho de 2011

Capítulo 2: CONCEITO DE AUTOR

Como prometi, publico mais um capítulo de meu livro DIREITO AUTORAL: DA TITULARIDADE.
1 - CONCEITO DE AUTOR

     Para compreendermos o conceito de autor, gostaríamos primeiramente de chamar atenção para a definição oferecida por Carlos Alberto Bittar da noção de direito autoral:
     “Em breve noção, pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências”[1].
     O direito autoral é um determinado conjunto de normas jurídicas de direito positivo que disciplina as relações entre o autor (artista, compositor, escritor etc.) e aqueles que fazem uso “econômico” das obras intelectuais, artísticas, literárias e científicas.
     Portanto o direito autoral é exercido por seu titular sobre a criação intelectual – a obra – e não sobre a coisa e/ou o suporte. A propriedade desse suporte material, onde está fixada a obra, não se confunde com o direito de autor sobre a mesma obra. O direito de autor nasce do ato de criação da obra e não das formas para adquirir seu domínio, tais como apropriação,  cessão, e outras[2].
     Tratando agora do conceito de autor, podemos entendê-lo partindo de duas visões distintas, teoria da propriedade e a teoria da personalidade. Rebatendo a primeira, a teoria da personalidade vê no direito de autor um direito pessoal resultante da livre manifestação do pensamento. Esta teoria justifica a tutela do autor como uma manifestação de sua liberdade de ação, manifestação que constitui, como a própria liberdade, um jus personalissimum, um direito inerente à pessoa e intransferível, ou seja, reconhece aquele que cria como portador de um estatuto específico de autoria que lhe pertence exclusivamente.
      No livro  A doutrina do Direito de Kant, a questão do direito autoral ao trecho intitulado “o que é um livro” apesar de consistir de um trecho bem pequeno dentro de uma obra tão extensa, envolveu um problema fundamental, a saber, uma possível contradição entre o “direito da coisa” e o “direito da personalidade”.
      “O direito sobre uma coisa”, segundo Kant, “é o direito de fazer um uso privado de uma coisa que eu possuo (originariamente ou por meio de acordo contratual) em comum com todos os outros”.[3] O autor pretende com isso compreender de que modo o direito regula e garante “o meu e o teu”, isto é, garante legitimamente aquilo que é propriedade de cada um. Como  por exemplo, a propriedade originária que é o solo, ou algum objeto de uso e de troca, etc.
         O direito da personalidade é definido por Kant do seguinte modo: “A posse do arbítrio de um outro como faculdade de determinar por meio do meu arbítrio a uma certa ação segundo as leis da liberdade (...), é um direito (..), mas o conjunto (o sistema) das leis segundo as quais eu posso estar nessa posse, é o direito da personalidade, que só pode ser único”[4]. Trata-se nesse caso da possibilidade da pessoa de direito entrar em um contrato segundo a autonomia da vontade. Por essa razão não há uma posse originária do direito da personalidade, tal como, por exemplo, no caso do solo.
      Dada a definição desses dois direitos,  Kant entendeu que o livro, enquanto suporte da criação de obra do intelecto, pode ser transferido ao editor que deterá o direito real sobre a coisa, enquanto que o autor do livro mantém o direito pessoal sobre o mesmo, que por contrato pode ser transferido do autor ao editor.  Se o livro é transferido do editor para um terceiro, que objetive editá-lo, temos uma transferência ilegítima, porque não houve a anuência do autor. A transferência legítima do autor foi para o editor e não para esse terceiro. É por isso que Kant pode dizer o seguinte:
     “A propriedade que um autor tem sobre seus pensamentos(...), ele a conserva apesar da reprodução[5]
     Interessante ver como Larochelle se refere ao problema:
       Nessa perspectiva, o editor representa mas não adquire qualquer direito. O editor é estranho à origem da obra por não criar nada, não assume nem seus méritos, nem seus vícios. Um tal exame aloja, em suma, na aderência do sujeito ao seu discurso a causalidade última deste e aí estabelece o critério para um direito pessoal na natureza do livro”.[6] 

       “O autor e o proprietário do exemplar”, diz mais uma vez o próprio Kant, “podem ambos, com o mesmo direito, dizer de um livro: é meu livro! Mas em sentidos diferentes. O primeiro toma o livro como escrito ou discurso; o segundo, simplesmente como instrumento mudo da difusão do discurso até ele próprio”[7].
     Na visão de Kant, a propriedade intelectual se identifica com  o autor enquanto que o direito de edição compreende a “conduta de um negócio em nome de outrem”[8], que é como a concessão do usufruto e que limita o poder do editor ao uso do livro. E esse princípio kantiano da delegação editorial “retira assim sua razão de ser do reenvio à interioridade da pessoa e às suas qualidades”[9].  
    No Brasil, a definição legal de autor consta da Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1988  que assim define em seu art. 11:
    “Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.
     Parágrafo único: A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nessa lei”.

     Por esta definição, entendemos que está implícito que a pessoa física é quem pode ser autor, não o pode a pessoa jurídica porque esta não pensa, não escreve, não cria, portanto não pode figurar como autor. Ainda que só a pessoa física possa figurar como autor, algumas pessoas físicas que pensam, escrevem, criam não são protegidas pela nova Lei autoral. São aqueles que criam projetos de lei, suas emendas, enfim, textos legais (art. 8ª da Lei 9.610.98). O direito moral e patrimonial do autor presente na lei só protege o criador de obra literária, artística ou científica.
     Vemos que o artigo 11 “caput” define autor. No entanto, o seu parágrafo único ressalta que a proteção dada ao criador (a Lei 9.610/98 usa as expressões “autor” e “criador” como sinônimas) poderá passar para quem não criou a obra. Observe-se que a lei pressupõe que “mesmo a pessoa jurídica não sendo autora, a ela poderão ser atribuídos direitos originais próprios da autoria”[10]
     Antes das duas mais recentes leis, Lei 9.610/98 e da Lei 5.988/73, o direito autoral era regido pelo Código Civil (Direito das Coisas) e compreendia-se como um direito de propriedade e não como um direito da personalidade.
    





[1] Bitar,1994:8.

[2] Há quem pense de outro modo: “Direitos autorais deixam de ter o desprendido pendor mecênico voltado para o sublime gesto de proteger os criadores intelectuais e suas obras. Hoje, são bens econômicos que interessam a Organização Mundial do Comércio” (Sanches,1999:19).

[3] Kant, 1979, p. 136.
[4] Idem, p. 149.
[5] Kant,1995, p. 119.
[6] Larochelle, 1999, p. 68.
[7] Kant, 1995, p. 131.
[8] Idem, p. 120.
[9] Larochelle, 1999, p. 68.
[10]  Sanches,1999:85.


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