segunda-feira, 14 de março de 2011


                                        APRENDENDO CORDEL E REPENTES

       O fato de incríveis aventuras aparecerem na forma de versos facilita a que o homem comum o decore e os reproduza de memória. Andei por muitas fazendas no interior do Piauí quando criança, isto na década de 50 e presenciei esses momentos. Na localidade chamada Araçás, perto do Município de Batalha-PI uma fazenda onde passava as férias,  era comum nas noites de trabalho no fabrico da cajuína, ou na época das farinhadas, das moagens, ou quando as mulheres reuniam-se para fabricar o doce de buriti,  os homens, numa grande roda, ao sabor de umas biritas, versejarem os mais variados “romances”, quase todos ditos “dicó” (de cor). Poucos eram os que pegavam os folhetos e faziam sua leitura cantada porque os tinham de memória. Assim ouviam-se as mais belas aventuras, cantadas em melodias tristes, monocórdias, hipnóticas, que nunca me saíram da memória e que hoje aplico quando estou a improvisar versos, porque já expliquei, que tenho essa habilidade. Crio versos na hora, sobre os mais variados temas e nas dezenas de formas próprias a improvisação (martelos, glosas, sextilhas, redondilhas e moirões), assunto que daria um novo livro. Aquela foi a escola mais importante para a minha formação de cantador/repentista e compositor, trabalho que sempre exerci por toda a vida.
     Quando criança, embora freqüentasse a escola, tinha obrigações como ajudante de bodegueiro na bodega de meu pai no período em que morávamos em Piripiri no Piauí. Esse trabalho me fazia ficar grande parte do dia  a ouvir os vendedores de romances, assim como os cegos com suas rabecas e ainda presenciava os encontros de repentistas anônimos na porta do mercado. A bodega de meu pai, seu Raimundo Borges, funcionava na praça do mercado, frente ao quiosque de dona Tetê, onde toda essa mágica acontecia. Forasteiros misturavam-se a cegos pedintes e a versejadores anônimos, hipnotizados pelo cheiro da panelada servida em pratos fundos de alumínio. Passei minha infância inteira rodeado destes fatos, dessas figuras, com suas histórias e melodias maravilhosas. Hoje sei que aquele canto do cego para adquirir algumas esmolas,  assim como o canto desse outro personagem que é o vendedor de folhetos de cordel têm a ver com as notas do canto gregoriano e do cantar religioso dos árabes.
     Vez por outra, aparecia um cordelista mais endinheirado que armava um equipamento de som conhecido como “amplificadora”, que emitia, num tom cheio de ruídos e na freqüência de um médio anazalado, palavras rasgadas, roucas, pelo uso diário de sua voz no trabalho de vender libretos nas feiras. Como ele mesmo dizia: “Vou cantar folheto”. E preparava a cena, armava alguns barbantes entre dois paus e o restante espalhava os folhetos sobre uma esteira de palha e e na tradição oral das cantorias improvisadas, cantava os folhetos, lendo-os encantando os presentes com as histórias de amor, valentia ou grandes aventuras do cangaço, ou vidas de santos, de guerreiros ou de personagens imaginários, que simbolizasse a  eterna luta do bem conta o mal. Diariamente eu via o vendedor de folhetos chegar, arrumar os folhetos pelo chão, e montar uma geringonça para ampliar a voz. A parafernália era mantida por uma bateria de caminhão, posicionada lá distante, frente para ele, um autofalante, ligado por um fio que ia até ao microfone que portava amarrado a altura de sua boca, assim, levava a mensagem a toda a praça do mercado. Essa técnica de manter o microfone amarrado ao próprio corpo facilitava o serviço de vender, receber o dinheiro e dar troco aos muitos fregueses que corriam para limpar o estoque de livrinhos. Ele sabidamente abria para ler,  sempre o folheto mais empolgante: Prisão de Oliveiros, Encontro de Oliveiros com Ferrabrás, O valente Zé Garcia, Princesa Megalona, Pavão Misterioso  e ao fazer a leitura, parava no melhor da história, deixando a platéia ansiosa por conhecer o final. O cordeleiro (aquele profissional apenas vendedor de cordel) ou o cordelista (aquele que cria e vende histórias publicadas em cordel), sem terminar a leitura da aventura  que apresentava, fechava o libreto e sem mais nem menos, abria inteligentemente, outro dos folhetos e iniciava a leitura cantada de outra história. Com esse ato, investia na curiosidade da platéia, que sedenta por conhecer o final da trama até então apresentada, adquiria o folheto abandonado, para lê-lo em casa. Com essa estratégia, o folheto lido recentemente alcançava vendagem de limpar o estoque, significativa, vindo a se esgotar. Todos os presentes desejavam saber como terminava a aventura. Então, após comprar o folheto,  corriam para suas casas com a finalidade de ler o final e compreender toda a trama. E assim se revezavam os fregueses. Quem ia passando já ouvia o início da história seguinte, parava e com ele acontecia o mesmo que com o ouvinte anterior, porque o vendedor repetia a mesma atitude. Ora, muitos dos libretos de minha coleção foram adquiridos naquele tempo. Nunca os joguei fora. Sempre fui um garoto que guardava tudo. Um colecionador. Colecionei gibis, flâmulas, carteiras de cigarro vazias, moedas, selo e hoje eu entendo o ouro que guardei quando vejo meus folhetos de cordel originais adquiridos nas feiras do meu sertão desde a minha infância.

2 comentários:

  1. Caríssimo filho de Piracuruca nas terras do Piauí.
    Meu querido conterrâneo,
    Com muita satisfação,
    Apareci por aqui
    Pedindo a sua atenção!
    Desculpe este meu afoite
    De expressar boa noite
    Do fundo do coração.

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  2. Meu caro Pedro Monteiro. Obrigado pelo contato e pelo carinho. Fico feliz em ter mais um amigo. Como vê, sou uma pessoa encantada com a literatura popular, especialmente pelo cordel e pelo repente.
    Um abraço do
    Jorge Mello

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