segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Repente: no Nordeste do Brasil, na América andina e no Caribe

O REPENTE
(No Nordeste do Brasil, na América andina e no Caribe)
Jorge Mello

O cantador repentista, assim como o criador da literatura de cordel, está hoje muito ligado à cultura nordestina. Mas sua origem está na Idade Média. Ainda hoje, esse homem canta a história da região, suas lendas, e mistura os personagens reais de sua terra, com personagens medievais.  Antigamente a maioria dos  grandes cantadores nordestinos era analfabeta.
Todos eles têm muito orgulho de sua profissão. São figuras curiosas.  Vêm de pequenos plantadores do sertão. Estão entre os cegos, os mendigos e os aleijados. Nunca recusam um desafio.  Caminham léguas para cantar ante um público rústico e diante deste, exibir suas qualidades, sempre muito aplaudidas e admiradas.
Quando aparece a oportunidade de se exibirem numa cantoria, esses homens são capazes de abandonar a tudo que não seja sua viola. Deixam  seus afazeres na roça, nos pequenos comércios e saem como verdadeiros  Quixotes palmilhando o sertão ardente procurando  aventuras.  Vivem do que tiram nas feiras, seja ganhando por seus versos nos desafios,  ou vendendo folhetos de cordel. Nesses ambientes, são figuras  indispensáveis. Quando estão em desafios, improvisam versos que empolgam a suas platéias. Os versos mais felizes desses embates, são logo repetidos pelos membros da assistência, são conservados na memória coletiva. Essa literatura oral é riquíssima.
Na Idade Média, o gênero que mais parece com o nosso desafio, é o tenson. Esse gênero era verdadeiramente a batalha poética entre os improvisadores.  Passou para a península castelhana  com seus ímpetos e delicadezas, como escreveu Câmara Cascudo.
Esses homens aparecem também por toda a América espanhola, onde as grandes  payadas de contrapunto são verdadeiras batalhas. Um duelo poético que pode durar vários dias e noites. Durante o embate, os contendores, esquecem toda a modéstia ao falarem de si próprios, com a finalidade de humilhar o oponente. A característica dos seus versos e do próprio folclore sul-americano saem duma razoável linha de modéstia. Santos Vega, considerado o máximo dos payadores argentinos, é apontado como imodesto ao anunciar-se.
“ Soy yo el Santos Vega
Aquél de la larga fama...”

Vendo-se o poetário Venezuelano aparece:
“ Yo soi el Ramon Palacio,
el que vive en Yarumal;
Yo soy el que me paseo
en el filo de un puñal.

Na Colômbia:
Me llaman el tantas muelas
aunque no las he mostrao,
y si las llego a mostrar
se há de ver el Sol clipsao,
la luna teñida en sangre,
los elementos trocaos,
las estrelas apagadas
y el mesmo Dios almirao...
O desafio  aparece sempre em sextilhas, antigamente aparecia em quadras. Devo lembrar que não são as únicas formas usadas. Para a exibição de sua agilidade mental, o cantador repentista trabalha em muitas outras  formas ou gêneros, mas em duelos de pouca duração. Isto por causa da dificuldade exigida por elas. Eu como sou repentista,  me sinto bem duelando em redondilha maior, ou seja,  uma estrofe formada por sete versos de sete sílabas, com rimas ABCBDDB.
Câmara Cascudo diz  que essas outras formas “ pertencem mais à classe das  curiosidades que ao molde clássico do desafio.”
Também usada como desafio, e que aparece por toda a América espanhola, está a ligeira. Trata-se de uma forma muito simples. Cada cantador improvisa dois versos, canta o estribilho “ ai,d-a,dá”. Seu antagonista responde cantando os outros dois versos e pronto termina a quadra rimada. Essa fórma ABCB por ser muito simples, é monótona.
No Chile a ligeira chama-se Palla a dos razones. Veja uma passagem entre Clemente Ruiz e José Tejada:
Ruiz: - Eres um tejo, Tejada,
pero yo, soy un demonio.
Tejada: - No importa que seáis el diablo
me ayudará San Antonio.
Tejada: - Ya que sois tan caballro,
dime cómo era tu padre.
Ruiz: - Si quieres saber cómo era
pregúntaselo a tu madre.
Afirma Câmara Cascudo, que “ no foloclore poético sul-americano, pelo que  leio no magnífico livro do poeta colombiano Ciro Mendia ( “Em torno a la Poesia Popular”. Medellin, Colômbia, 1927) a maneira dos contrapuntos, correspondentes aos nossos desafios, é idêntica. Em todos os países sul-americanos os guitarreros ou payadores cantam a trova ( quadra) e as sextilhas. “
Em trovas:
Arriba mano Manuel
busté ques tan buena ficha,
bregue a sostener la trova
pa que ganemos la chicha.

Pa que ganemos la chicha
No se necessita tánto,
Canto se me da la gana,
y se no me da, nocanto.

Em sextilhas, veja versos de El Moreno numa resposta a Martins Fierro, que lhe perguntara o que era a Lei:
La ley es tela de araña,
en mi ignorancia lo explico,
no la tema el hombre reico,
no la tema el que mande,
pues la ruempe el bicho grande
y sólo enrieda a los chicos.

Es la ley como la lluvia,
nunca puede ser pareja,
el que la aguanta se queja
pero el assunto es sencillo:
la ley es como el cuchillo:
no afiende a quien lo maneja.

Posso afirmar que essas formas chegaram da Ibéria e tomaram conta de todos os lugares e cada povo cultivou as que mais apreciaram. Emigraram também portanto para a América Central e para Cuba, Venezuela, Colômbia e Bolívia. Aparecem com o nome de corrido, espécie de rimance que as vezes toma a forma de desafio. Tem a pallada no Chile e payada na Argentina e no Uruguai.
Como já falei, o nosso desafio é o mesmo que a payada de contrapunto. Vejamos nos versos de Martin Fierro:
A un cantor le llamam bueno
cuando es mejor que los piores
y sin ser de los mejores
encontrándose dos juntos
es deber de los cantores
el cantar de contrapunto.

Sobre isso, sobre o “cantar de contrapunto” ou “payada de contrapunto” , vejamos o que diz Lehmann-Nitsche:
...payada de contrapunto. Se llama aí la lucha a guitarra y canto, sostenida por dos payadores, los que alternando, dan preguntes que el adversário tiene que contestar, como en las luchas de los trovadores medievales de los cuales los payadores argentinos son descendientes diretos. Se trata muchas vezes de un verdadero examen en ciencias naturales, historia, etc, y como en el colegio, el que más sabe, gana.
O repente aparece também no Caribe, com as características de perguntas e respostas. Ainda em castelha, aparece nos velhos “ cancioneros” a denominação “Preguntas y Respuestas”. Nada mais é do que uma espécie de diálogo entre dois cantadores. Um faz uma pergunta e o outro responde. No “Porto Rico Folk-Lore, riddles”, de número 190, aparece essa quadra em forma de “adevinhação”. No caso em questão é sobre a  cotorra, que é uma espécie de papagaio. Em  1916 há o registro da versão que se segue, uma advinha européia mas que tornou-se corrente por toda a América espanhola. Foi publicada por J. Alden Mason, no The Journal of American Folk-Lore:
Un hombre murió sin culpa,
sua madre nunca nació,
y su abuela estuvo doncella
hasta que el nieto murió.

Hoje o que sei é que o repente está presente tanto nas feiras e festas populares do nordeste do Brasil, quanto em Cuba, onde os repentistas mantém um programa na TV há mais de uma década, improvisando seus versos, não deixando com isso, morrer essa manisfestação cultural que herdamos da Idade Média.

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